O pastor-teólogo: um especialista generalista
Escrito por Matheus Raduan, estudante do Programa de Tutoria Essencial 2023
“Pastoreai o rebanho de Deus que está entre vós, cuidando dele não por obrigação, mas espontaneamente, segundo a vontade de Deus; nem por interesse em ganho ilícito, mas de boa vontade; nem como dominadores dos que vos foram confiados, mas servindo de exemplo ao rebanho.”
(1 Pedro 5.2-3)1
Se você acompanha o que vem acontecendo no cenário evangelical brasileiro nos últimos anos, perceberá como a função do pastor tem ficado cada vez mais diversificada. Temos pastores de todos os sabores: o pastor-coaching, que irá alavancar seu bem-estar e acariciar seu ego às custas da doutrina do pecado; o pastor-empreendedor, que deseja que sua congregação seja tão próspera financeiramente, que esqueceu o verdadeiro tesouro que existe no céu; o pastor terapeuta, que, de tão forte flerte com a psicologia, não percebeu a sua carteira da insuficiência das Escrituras sendo roubada; os pastores influencers (ou youtubers), que, de tanto pular de treta em treta, resta a dúvida se aprenderam a distinguir quando se deve responder o insensato ou se possuem sabedoria para serem mansos e humildes. Sem falar de tantos outros como o pastor-charuteiro, o pastor-amigão, o pastor-ativista político e até mesmo, e não menos importante: o pastor-teólogo.
Há algumas décadas era senso comum a expectativa de pastores especializados em administrar uma construção civil, de fazer milagres e produzir avivamentos, de possuir uma agenda de visitas constantes na casa dos irmãos, que dominassem a arte de plantar uma igreja, para logo depois serem enviados para outro lugar. Mas será que essas funções também são adequadas?
Será que se perguntarmos para um cidadão comum “o que é um pastor?”, ele saberá responder com clareza? No meio de tantas funções que o pastor se ocupa, qual é aquela que o define? Esse comportamento do cenário brasileiro não é novo. Há muito tempo a função pastoral sem sido pautada pelas expectativas, demandas e exigências da cultura e sociedade sobre o pastor. Kevin Vanhoozer, teólogo americano e autor do livro O pastor como teólogo público, traz a seguinte reflexão sobre esse tipo de abordagem pastoral para o ministério: “O que faz pastores afundarem — ou melhor, evitarem a tarefa teológica — são as ondas do sentimento popular e os ventos de opinião pública que atuam como obstáculos e tentações, atrapalhando sua vocação de levar outros à maturidade em Cristo”2.
A crítica de Vanhoozer repousa sobre o pressuposto de que o pastor deve se ocupar, sobretudo, da teologia, ao invés de seguir ventos de doutrinas que a cultura exige. Em sua obra, Vanhoozer trabalha uma visão do pastoreio partindo das Escrituras, fazendo uma teologia bíblica, e, posteriormente, sistemática, mostrando como a função do pastor se desenvolve através da Bíblia na história da igreja. Logo é evidenciado que “pastores são e sempre foram teólogos, um teólogo público, um tipo particular de intelectual, uma classe específica de generalista”3.
Porém, no contexto brasileiro, muitas vezes o que vemos é um desinteresse pela teologia. No Brasil, pastores têm frequentemente sido apenas generalistas de exigências culturais. Possuem uma alta capacidade de se moldar e adaptar às específicas funções alheias ao ministério. Assim, o modus operandi de como se desenvolve a função pastoral não mudou de décadas atrás para hoje, o que mudou foram as exigências do cliente. A função do pastor quase sempre vem refletindo as influências culturais e intelectuais da sua época4.
Em terra de especialistas, generalistas são reis
Em seu livro Por que os generalistas vencem em um mundo de especialistas, David Epstein explora uma série de casos onde pessoas com habilidades e capacidades diversas conseguem ter um destaque maior na sua jornada. Usando atletas de diferentes esportes como exemplo, David se esforça para provar que o excesso de especialização não favorece tanto quanto a capacidade de performar em cenários diversos. Bill Gates, em uma de suas resoluções de ano, chegou a citar o livro de David como um dos livros que mais o marcou 2020, dizendo que concorda com a visão do autor, afirmando que precisamos conseguir saber trabalhar com uma gama de ferramentas quando o assunto é resolver problemas. A contraposição que David e Bill Gates compartilham é a de que o excesso de especialização não é muito efetivo em cenários complexos. É o excesso, e não a especialização em si, que se torna uma barreira.
No exemplo do livro de David, os atletas citados, embora sejam generalistas nas suas habilidades, ainda são especialistas no esporte. Observe, todo jogador de futebol precisa ser um especialista nos fundamentos do esporte e dominá-los bem: domínio de bola, finalização, marcação, toque, etc. para, então, desenvolver suas habilidades como generalistas em suas funções no jogo: saber mudar posição, variar entre meia e atacante, etc. Assim, aquele que deseja se destacar como um generalista e não cair no excesso de especialização precisará de um bom fundamento de específico.
Fazendo um paralelo com o ministério pastoral, parte dos pastores são generalistas que não possuem nenhum tipo de especialização. São generalistas de ventos de doutrina culturais e de seminários que às vezes não se propõem a ensinar adequadamente sua função. Vanhoozer, na mesma obra, reforça a capacidade que os pastores têm de ser generalistas7, porém, no cenário brasileiro, ainda estamos aquém de uma especialização generalizada. O pastorado brasileiro médio precisa procurar se especializar e a sua especialização é a teologia.
O pastor em formato T
A área de tecnologia possui enormes desafios para os profissionais que atuam nela. Existe uma forte tensão entre aqueles que desejam ser especialistas em tecnologias específicas e outros almejando ir para uma parte mais voltada a gestão de projetos (e pessoas). Sem citar funções que são até mesmo questionáveis, alguns dizem que você pode ser um ótimo desenvolvedor Frontend (desenvolver interfaces) ou Backend (desenvolver a regra de negócio), mas nunca conseguirá ser tão bom nessas frentes simultaneamente, sendo um Full Stack (faz tudo, Frontend e Backend). São dilemas reais de um desenvolvedor que também refletem a necessidade de generalistas.
Em um artigo chamado T-Shaped: The New Breed of IT Professional (Formato-T: A Nova Raça de Profissionais de TI)8, publicado pela Cutter em 2016, Yassi Moghaddam sugere uma nova abordagem para além de especialistas generalistas no mundo de TI (Tecnologia da Informação), podendo ser útil para outras áreas, até mesmo para o ministério pastoral. Interpretando a visão de Yassi, imagine a letra T de ponta cabeça, ꓕ, a base da letra sendo a capacidade de analisar todos os aspectos da vida em sua relação com Deus e com o evangelho de Jesus Cristo9, seu conhecimento geral de vida e de verdadeira realidade. E a reta na vertical, sendo a sua especialização, no caso do pastor-teólogo, a teologia. Podemos chamá-lo pastor especialista-generalista.
A proposta de Yassi possui um fator invisível chamado: tempo. O tempo favorece o pastor especialista-generalista. Aquele conhecimento específico ( I ) que caracteriza o pastor, a teologia, com o tempo será cada vez mais alto conforme ele continuar se especializando, e a base ( _ ) sendo suas habilidades como generalista, também crescerá em certa proporção se ele procurar se desenvolver nelas. Se o pastor for diligente com esse formato, o tempo será então favorável ao aumento do seu conhecimento específico de teologia que ele se especializa, e também ao aumento da sua base de conhecimento de vida como um generalista. Vanhoozer afirma que “pastores-teólogos não são necessariamente pessoas com QI elevado, mas precisam ter QT (Quociente de Teologia) elevado”10.
Procurando uma proporção adequada entre especialização e generalização de conhecimento, o truque está na diligência em preservar o formato em T. Formato esse que faz sentido para o cenário brasileiro, onde, diferente do norte-americano, em que Vanhoozer vive, ainda carece de especialização pastoral adequada generalizada.
Assim, o pastor-teólogo especialista-generalista volta às suas origens e evita a perda de tempo com carreiras mais sofisticadas e rentáveis11. Vanhoozer também afirma que “um grande número de pastores trocou seu direito de primogenitura vocacional por um prato de sopa de lentilhas”12 e esse fato é condizente com as suculentas frutas que vemos atualmente sendo oferecidas pela serpente aos pastores, desviando-os do seu ministério e chamado.
Concluindo, o pastorado médio brasileiro precisa de uma nova conversão; do arrependimento e abandono de práticas secundárias que usurpam a sua função primordial: ser um teólogo público, um tipo particular de intelectual que trata de assuntos com interesses sociais supremos, ao pregar a Verdade. Uma alternativa seria o pastor-teólogo especialista-generalista, aquele que possui uma base sólida de conhecimento de vida em Cristo para transitar durante seu ministério e um alto e firme pilar de quociente de teologia.
1 BÍBLIA SAGRADA ALMEIDA SÉCULO 21: ANTIGO E NOVO TESTAMENTOS. Coordenação das revisões exegéticas e de estilo de versão — Luiz Alberto Teixeira Sayão]. São Paulo: Vida nova, 2013.
2 VANHOOZER, Kevin. O pastor como teólogo público: recuperando uma visão perdida. Tradução de Marcio L. Redondo. 1 ed. São Paulo. Vida Nova, 2016. p. 20.
3 Ibid., p. 36.
4 Ibid., p. 5.
5 EPSTEIN, David. Por que os generalistas vencem em um mundo de especialistas. Tradução: Marcelo Barbão e Fal Vitelo. 1 ed. São Paulo. Globo Livros, 2020. 336 p.
6 GATES, Bill. 5 good books for a lousy year. Bill Gates, 2020, vídeo (3.50). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zxlx8aZJ6mE.
7 VANHOOZER, op. cit., p. 48.
8 MOGHADDAM, Yassi.T-Shaped: The New Breed of IT Professional. In: Cutter Consortium. Cutter. Boston, USA. 26 set. 2016. Disponível em: https://www.cutter.com/article/t-shaped-new-breed-it-professional-492976.
9 VANHOOZER, op. cit., p. 48.
10 Ibid., p. 36.
11 Ibid., p. 117.
12 Ibid., p. 17.