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“Ser cristão não coloca a pessoa acima do sofrimento”, diz psicanalista sobre suicídio

O psicanalista Eduardo Silva falou ao Guiame sobre os transtornos emocionais que têm afligido a sociedade pós-moderna.

Psicanalista Eduardo Silva em palestra na Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo. (Foto: IBAB Educação)
Psicanalista Eduardo Silva em palestra na Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo. (Foto: IBAB Educação)

depressão afeta 322 milhões de pessoas no mundo e continua afligindo cada vez mais a população mundial, segundo dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2017.

O Brasil é o país com maior prevalência de depressão da América Latina — 5,8% da população sofre com o transtorno, que afeta um total de 11,5 milhões de brasileiros.

De acordo com o psicanalista Eduardo Silva, as mudanças provocadas pela pós-modernidade têm afetado a estrutura emocional das pessoas. “Questões como pertencimento, reconhecimento e sentido para a nossa existência, podem ser abalados”, disse em entrevista ao Guiame.

Se para alguns a depressão é “falta de Deus”, o psicanalista esclarece que a afirmação de que “crente não fica deprimido” é equivocada. “No consultório por vezes aparecem pessoas com alto grau de sofrimento pelo que está passando e ainda agravado pela culpa pois de onde se esperava o consolo, vem a repreensão”, observa.

Outra questão psicológica que tem se tornado um problema no âmbito cristão é o aumento de casos de suicídio, inclusive entre líderes e pastores. Eduardo Silva alerta que “o fato de ser cristão não coloca a pessoa acima do sofrimento e principalmente da enfermidade”.

“Esperar que alguém, por ser pastor, não passe por esse tipo de sofrimento, é negar a nossa limitação humana. Talvez este seja um ponto para a nossa reflexão: existe tanta expectativa, pressão, demanda de cuidado do outro, competitividade e solidão no ministério pastoral, que o adoecimento pode ir acontecendo de maneira a não nos darmos conta de quão profundo estamos penetrando nessa noite escura da alma”, avalia o psicanalista.

“Nesse ponto quero lembrar da recomendação do Apóstolo Paulo a Timóteo: ‘Cuida-te de ti mesmo!’. Não só espiritualmente, mas física e emocionalmente também”, destaca Eduardo Silva, em referência a 1 Timóteo 4:16.

Confira a entrevista completa abaixo:

Guiame: Por que a depressão se tornou o mal do século?

Eduardo Silva: De fato temos um aumento substancial no diagnóstico da depressão desde meados do século XX e continua crescendo no presente século.

Cerca de 5,8% da população brasileira sofre de depressão (11.548.577 de pessoas) e 9,3% sofre de distúrbios relacionados à ansiedade (18.657.943 de pessoas). Como brasileiros estamos acima da média mundial e em primeiro lugar na América Latina (dados oficiais publicados pela OMS em 23 de fevereiro de 2017).

Precisamos considerar que existem múltiplas causas que contribuem para esse quadro depressivo. Aliás, muitos dos sofrimentos estão ligados à sua época. Hoje não sofremos como a cem anos atrás por exemplo, a realidade, os problemas e preocupações eram outras. Nesse momento em que alguns chamam de pós-modernidade, hipermodernidade, modernidade líquida etc., vivemos uma realidade que nos afeta a todos mas de forma singular.

Em um mundo globalizado — com mudanças acontecendo todo o tempo e em uma velocidade estonteante — marcado pelo narcisismo, pela sociedade do espetáculo, do empreendedorismo de si, pelo individualismo e ruptura dos laços sociais, seja na família, entre amigos, no trabalho e até na igreja, nem todos respondem bem à esse sofrimento; o que pode levar a pessoa a uma depressão a ansiedade e a outros tipos de doenças sejam elas de fundo emocional ou não.

Questões como pertencimento, reconhecimento e sentido para a nossa existência, podem ser abalados. Existem outros fatores que poderiam ser mencionados, como o da constituição da estrutura psíquica, mas que não temos como comentar sem nos alongarmos em termos clínicos.

Guiame: Muitos acreditam que depressão é “falta de Deus”. Como você enxerga a relação entre depressão e fé?

Eduardo: Podemos tomar  como exemplo o profeta Elias. Após derrotar os profetas de Baal (1 Reis 18), dando grande prova de fé e coragem, foi ameaçado por Jezabel e se retirou para o deserto caminhando um dia inteiro, não levou comida e nem água, e ali desejou a morte.

Longe de querer fazer um diagnóstico, de uma coisa pelo menos podemos estar certos, Elias não estava feliz e realizado, mas profundamente triste, decepcionado e frustrado,  “talvez” deprimido com a situação que estava vivenciando naquele momento. Ele não via mais sentido em continuar vivendo e se não fosse o anjo com pão e água talvez ele tivesse alcançado o seu propósito.

Percebam que em um primeiro momento ele se alimenta mas volta a dormir, não recobra o ânimo de imediato, é despertado segunda vez e novamente se alimenta, só então ele começa a caminhada que durará 40 dias, ou seja tem um tempo, tem uma caminho a percorrer, tem um processo para superar aqueles sentimentos que haviam se apossado dele, mesmo ele sendo um profeta, um homem de fé e marcado por uma forte e inequívoca experiência com o poder de Deus.

Depressão requer cuidado. A afirmação de que “crente não fica deprimido” é equivocada. No consultório por vezes aparecem pessoas com alto grau de sofrimento pelo que está passando e ainda agravado pela culpa pois de onde se esperava o consolo, vem a repreensão.

Guiame: Como as igrejas podem identificar e lidar com pessoas depressivas?

Eduardo: O primeiro passo é entendermos que estamos vivendo um momento em que não só a depressão, mas ansiedade, burnout, bipolaridade, cutting (automutilação, principalmente em adolescentes) e bullying fazem parte do nosso dia a dia. Pessoas que estão à nossa volta, podem estar sofrendo com esses males. Boa parte desses termos já fazem parte do nosso vocabulário mesmo sem sabermos direito o seu significado clínico.

Promover espaços e momentos de acolhimento na comunidade é importante. Não é raro que a pessoa participe de um culto por exemplo mas o sofrimento permaneça latente ou ela não se sinta à vontade para falar sobre o que está sentindo.

Promover encontros com a temática de saúde emocional pode ser um caminho para o acolhimento nesses casos, criando oportunidades de narrativas sobre o que se está passando, falar a respeito é um início. Muita dor e sofrimento pode ser mitigado e até sublimado em momentos como esse.

Mas para isso, precisamos estar disponíveis, aprender a olhar para o outro, para o próximo e percebermos se algo está acontecendo com ele. Outra atitude importante é de nos dispormos a ouvir, mas ouvir atentamente e sem julgamento ou respostas e soluções rápidas  para sofrimentos complexos. Estar ao lado, ouvir com amor, acolher, abraçar. Na dúvida, recomendar, com muito cuidado e sabedoria, que a pessoa procure a ajuda de um especialista.

Guiame: O suicídio também se tornou uma realidade nas igrejas, especialmente entre os líderes. Por que pessoas tão entregues à fé têm sofrido com isso?

Eduardo: Esse é um tema dos mais delicados e também um tabu, dentro e fora das igrejas. Os próprios especialistas se dividem quanto a abordagem do tema. Recentemente uma série chamada “13 Reasons Why” acabou por trazer à tona essa discussão. Muitos jovens e adolescentes assistiram a série e aconteceu um misto de identificação que precisou ser tratada com aqueles que estavam mais sensíveis emocionalmente e poderiam ser afetados, e também provocou um debate de como andam nossos jovens e adolescentes, e quais os cuidados necessários para com eles.

Ao mesmo tempo, nos últimos anos, nos chegam notícias de pastores ou de seus familiares que cometeram suicídio. Isso tem sido um choque e motivo de muita discussão, mas acho que ainda temos muito o que avançar nesse tema. Não nos aprofundamos o suficiente e não sei se estamos avançando no sentido de oferecer mais espaços e oportunidades para que esses líderes possam se dar conta da real necessidade do cuidado de si.

O fato de ser cristão não coloca a pessoa acima do sofrimento e principalmente da enfermidade. No caso específico do suicídio, a maioria dos diagnósticos apontam para um quadro de doença e, não em poucos casos, havia o devido acompanhamento e tratamento psiquiátrico.

Esperar que alguém, por ser pastor, não passe por esse tipo de sofrimento é negar a nossa limitação humana. Talvez este seja um ponto para a nossa reflexão: existe tanta expectativa, tanta pressão, demanda de cuidado do outro, tanta competitividade e solidão no ministério pastoral, “tão entregues” — para usar um termo que você mesmo usou na pergunta — que o adoecimento pode ir acontecendo de maneira a não nos darmos conta de quão profundo estamos penetrando nessa noite escura da alma.

Nesse ponto quero lembrar da recomendação do Apóstolo Paulo a Timóteo: “Cuida-te de ti mesmo!”. Não só espiritualmente mas física e emocionalmente também.

Pode parecer meio óbvio mas não fazemos isso, a saber: tirar um tempo para nós mesmos, tempo para reflexão, mas também para o “não fazer nada”. Tempo para fazer coisas que nos deem prazer. Fazer exercícios físicos, nem que seja caminhada. Consultar um médico regularmente, cuidar da alimentação, do sono enfim… Cuidar de si, talvez seja isso o mais importante a fazer nesse momento.

FONTE: GUIAME, LUANA NOVAES

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